Vocabulário

segunda-feira, 29.01 16h30

Lista de anotações, reflexões e fragmentos dos conceitos que guiaram o processo de pesquisa e foram fundamentais para o desenvolvimento e aprofundamento do trabalho.

Na tentativa de nomear questões que atravessaram a investigação, criamos um vocabulário tomando como ponto de partida a experiência do processo. Levando em conta os singulares modos de atuação e com o intuito de encontrar possibilidades para a manutenção do pensamento gerado durante os ensaios, exercitamos essa metodologia da escrita, produzindo outra proximidade com aquilo que estávamos fazendo.

Segue um exercício de síntese de todo o conteúdo produzido durante 2 anos de investigação.

  • Produção de Movimento (Artificialidade/Arbitrariedade)

Movimento é algo que produzimos e o início dessa produção depende da nossa conexão com uma constelação de vontades, atravessadas por memória, imaginação, estímulos externos, conceitos, afecções, relações e etc. Tanto a arbitrariedade quando a artificialidade são dispositivos que podem convocar essa produção. O movimento pode partir de uma escolha, uma tomada de posição frente a uma indicação ou acontecimento (agir sobre ele, podendo ser essa ação a escuta radical daquilo que acontece) ou mesmo podemos, a partir da artificialização de uma situação, gerar estímulos para o seu aparecimento.

No processo de pesquisa, o que tornou-se um desafio para nós foi justamente nos perguntarmos sobre a manutenção dessa produção. Partindo da idéia de que nosso interesse estava circunscrito na noção de movimento conectado a idéia de gesto, o que percebemos com o tempo foi que o primeiro gesto de produção sempre se confundia com o último.

Explicando melhor, havia algo da lógica de operação da nossa produção que nos mostrava que todo gesto instaurava na sua ação uma força inaugural, um princípio de morte/transformação, e uma noção de reprodutibilidade. A sustentabilidade então estava em juntos construirmos uma máquina, um organismo movido por condições que tornassem possível a compreensão e desenvolvimento dessa lógica.

Inventamos então uma máquina de desejo que tinha como principal condição dizer SIM a tudo que se manifestava a partir do fazer (essa máquina é uma outra forma de nomearmos esse vocabulário que segue). Tentando escapar de uma certa reatividade (macro e micropolítica) que pudesse paralisar a nossa vontade de ação, tomamos como ponto de partida para o trabalho a afirmação positiva e radical das vontades.

Fragmentos das indicações coreográficas:

– Movimento x Intenção.

– Não somos vítimas daquilo que produzimos. Somos responsáveis. A culpa é moral, a responsabilidade é política. Emancipação pelo movimento.

– Responsabilidade com as escolhas e com aquilo que produzo: Responsabilidade com aquilo que você gera e o que lhe gera.

– Arbitrariedade 01: exercício de liberdade/constituição da autonomia.

– Arbitrariedade 02: estratégia simbólica e compositiva/autonomia do Sujeito.

  • Prática

Grupo de ações e verbos que atravessados pela idéia de repetição e diferença, proporcionam organizar parâmetros para que um movimento se estabeleça e encontre suas próprias éticas, crises, apontamentos, sensações e sentidos.

Neste trabalho Prática foi entendida enquanto conceito, caixa de ferramentas que está diretamente voltada à produção de forças físicas e psíquicas, submersas em estados de concentração, atenção, temporalidades expandidas, latência das percepções espaciais e consequentemente de suas superfícies. Modulando a velocidade do pensamento a partir da produção de direções que desestabilizam os automatismos do sistema sensório-motor, a noção de prática foi implicada para nos ajudar na constante manutenção da sensação, sobre a continuidade das potências estabelecidas no momento presente.

“Cada começo é só continuação, e o livro dos eventos está sempre aberto no meio”. Wislawa Zymborska.

Fragmentos das indicações coreográficas:

– Ponto de partida: Na limitação, encontrar os impulsos. Do não saber, encontrar o saber. Da concretude, tocar o enigma.

– Constelação: idéia de simultaneidade. De longe cria-se desenho, de perto escultura.

– Tempo Presente: afirmado a todo momento e em constante formação.

– Desejo de FORMA que não se transforma em FIGURA: ordem da vontade.

– Gerúndio: tempo que não é fixo – tempo infinitivo.

  • Micromovimento (“Pausa” / Dinâmica / Diferença de tensão) Amplitude MENOR Importância MENOR Sentido MENOR

O interesse pelo Micromovimento partiu da vontade de, na produção gestual, se reencontrar com o ordinário, com o comum, com aquilo que aparece nas nossas experiências mais cotidianas. Também como acúmulo sensível do sabor da experiência, o micro veio para gerar uma dimensão de espelhamento da consciência sobre aquilo que é óptico e háptico no gesto. É como se pudéssemos, engajados em um estado de atenção, constituirmos junto de uma ação qualquer, um fluxograma perceptivo que compreende encontrar os pontos de encontro focal de distintas sensações, nesse caso a visual e a tátil, e sustentar um estudo constante da proximidade e distanciamento delas do gesto.

Fragmentos das indicações coreográficas:

– Amplificação do sensível.

– Tempo para o tempo aparecer.

– Ganho de Espessura.

– Reverberação da Experiência.

Referência:

Erin Manning – The Minor Gesture

Haroldo Saboia – Didática do contato

  • Ser Global/ Ser específico (paradoxo/fragmento)

Termo usado para expandir a noção do próprio corpo, seu contorno, inventando e transportando a sensação por outras possibilidades proprioceptivas.

Nesse processo, tratando-se da invenção, pode-se tanto caminhar pela lógica da fragmentação, por exemplo pensar que o corpo está condicionado à vontade e desejo das mãos, unicamente, como também pelo princípio da extensão, gerando uma noção corpórea que extravasa a idéia comum de contorno humano, podendo compreender uma corporeidade formada por corpo humano, chão e parede por exemplo.

No caso do transporte, a vontade é gerar uma sensação de materialidade da virtualidade que é o outro. Transportar a consciência para um outro corpo, para uma outra sensação de corpo. Por exemplo, produzir uma movimentação imaginando que você está se vendo produzi-la, como se fosse algo ou alguém fora de você que o fizesse.

Ambos os caminhos foram utilizados no trabalho.

Fragmentos das indicações coreográficas:

– Tensão Vetorial.

– Hiper Atenção: atenção total, às vezes fragmentada, outras generalizada do que se produz* junto com outro corpo.

*Pontos de produção: movimento (interno – externo)/Percepção (micro – macro)/Olhar (o que vemos e o que nos olha)/Tempo (em constante formação)/Distância entre as coisas (espaços vazios e economia dos afetos).

Referencias:

– Mônada: Gabriel Tarde, Libniz (mónade, termo normalmente vertido por mónada ou mônada, é um conceito-chave na filosofia de Leibniz. No sistema filosófico deste autor, significa substância simples – do grego μονάς, μόνος, que se traduz por “único”, “simples”. Como tal, faz parte dos compostos, sendo ela própria sem partes e portanto, indissolúvel e indestrutível.

– Individuação: Gilbert Simondon – Teoria crítica ao atomismo e ao esquema hilemórfico (teoria Aristotélica que percebe o corpo como a junção de matéria e forma, essência e substância). Simondon se concentra na construção de uma idéia de operação que consiste em dar a ver a individuação enquanto um processo, recusando as teorias que a implicam como uma ação primeira e absoluta de afirmação do indivíduo. Ou seja, a individuação seria uma operação constantemente engajada na atualização dos processos que vem formar e constituir o indivíduo. Um sistema de formação que não distingue ser de conhecer.

Caio Cesar Cabral – A teoria da individuação de Gilbert Simondon: os modos físico e biológico da individuação

  • Tipo de Tensão Vibracional (entre relaxamento) FUNDO/SUPERFÍCIE

Exercício que parte da idéia de variação do tônus muscular, praticando uma qualidade de movimento que perpassa vários territórios e colorações desse estado de tensão elástica, com o intuito de encontrar uma zona de indistinção tônica.

Via sensação, o objetivo está em, na produção de movimento, perseguir os pontos de encontro dessas tensões, um dos muitos lugares onde imaginamos estar localizado as crises, negociações e transferências para geração de continuidade dramatúrgica do corpo. Foi justamente nessas regiões que apostamos a nossa concentração durante a pesquisa para encontrarmos as possibilidades de transformação daquilo que é esperado de uma ação. Ou seja, o objetivo foi se implicar nessas zonas de conflito, zonas de indeterminação tônica, para fazer com que um suposto vetor resultante desse debate, vibra-se distante de uma resposta automática.

Tudo isso condicionado a pergunta: Onde escolhemos atuar, com a nossa atenção, sobre aquilo que estamos produzindo esteticamente e eticamente?

Fragmentos das indicações coreográficas:

– Musculatura profunda: estudo de tônus e textura muscular.

– Pele: superfície. Roupa, tecido enquanto superfície, corpo vivo, espaço de atuação.

Referência:

– Lógica da sensação: Gilles Deleuze (“A sensação é o contrário do fácil ou do já feito, do clichê, mas também o contrário do “sensacional”, do espontâneo… etc. A sensação tem uma face voltada para o sujeito (o sistema nervoso, o movimento vital, o “instinto”, o “temperamento”, todo um vocabulário comum ao naturalista e a Cézanne), e a outra face voltada para o objeto (o “fato”, o lugar, o acontecimento). Ela pode também não ter face nenhuma, ser as duas coisas indissoluvelmente, ser o estar-no-mundo como dizem os fenomenologistas: por sua vez eu me torno na sensação e alguma coisa me acontece pela sensação, um pelo outro, um no outro”).

Gilles Deleuze – Francis Bacon: lógica da sensação

  • Abandono (Cortar o fluxo/Largar) PENSAMENTO – RESPONSABILIDADE – TOMADA DE DECISÃO

Desde o início da pesquisa falávamos sobre um certo fluxo que se mantinha na produção de imagens nas artes performáticas nos últimos anos. Pensávamos sobre essa idéia de fluxo conectada a noção de consumo e de desempoderamento das próprias imagens. A imagem tem se tornado uma antecipação da potência dos encontros, tem deixado de existir como rasgo, como ferida, como possibilidade, para tornar-se uma estratégia de captura dos desejos mais ansiosos, sejam esses “revolucionários” ou não.

Possivelmente, por conta da precariedade do campo de produção artístico, da pressão do mercado por produtos estabelecidos, e dos dispositivos de compartilhamento, o que se vê são imagens que perderam sua noção de permanência, tornando os nossos sentidos cada vez menos habilitados a experimentar outras noções de temporalidade junto delas.

No trabalho experimentamos gerar pequenos bloqueios de circulação, contra-fluxos, estratégias para abandono dos movimentos que se apresentavam, em um dado momento, com uma queda de atenção sobre os sistemas coreográficos criados. A queda de atenção tornava o sistema propício ao equilíbrio, a estabilidade e a uma autoprodução apaixonada por si mesma. Isso fazia com que o acontecimento perdesse força e complexidade.

Como investigação, decidimos subtrair elementos que acreditávamos ser fundamentais para a expectativa gerada entorno das imagens. Essa subtração tinha como objetivo dissimular a captura, retirando as imagens de perto das vontades de encerrá-las em si, deixando os sentidos daqueles que se relacionavam com elas desconcertados.

Por fim o abandono tornou-se também uma estratégia dramaturgica do trabalho, nos aproximando da idéia de corte e montagem no cinema. Junto dos filmes de Jean-Marie Straub, Danièle Huillet, Pedro Costa e Apichatpong Weerasethakul, aprofundamos a noção de arbitrariedade contida no corte cinematográfico, entendendo esse conceito como ferramenta de composição para fazer ver o movimento de dissidência dos fluxos.

Fragmentos das indicações coreográficas:

– Dualidade do verbo Abandonar: inatividade/silêncio.

– Perda de Força: impotência, paixão triste. Vladimir Safatle ( “…pois não há paixão que, em vários momentos, não nos entristeça. Não há afetos que não nos contrariam, não há vida que não se deixe paralisar, que não precise se paralisar por certo tempo, que não se vista com sua própria impotência a fim de recompor sua velocidade. Mais, ainda. Não há vida que não se sirva da doença para se desconstituir e reconstruir.”).

– Abertura de Espaço: Real e Virtual.

Referência:

Pedro Costa – Where Does Your Hidden Smile Lie?

Farocki Harun -Desconfiar de las imagenes

  • Memória Corporal/Molde

Memória corporal surgiu como questão no trabalho para ser desafiada. Uma série de exercícios foram experimentados para tornar essa sensação uma das muitas possibilidade de aprofundamento dos entraves e crises que a produção de movimento alcançava.

O que a prática foi nos apresentando é que esse conjunto de hábitos corporais muitas vezes nos protege dos problemas do sistema pois responde de maneira eficiente as crises. Tomando como ponto de partida o desejo pela ineficiência e desejando demorar mais sobre as trajetórias difíceis, instauramos dois posicionamentos frente a esses acontecimentos:

1.Junto do problema, perceber a resposta que era produzida com maior velocidade e, a partir do movimento, gerar uma questão para essa resposta instaurando uma dialética corporal.

2.Entendendo movimento como trajetória e sabendo da possibilidade de volta ao que se reconhece como ponto de partida dele, perceber que essa volta não necessita passar pelos mesmos lugares e nem reproduzir os mesmos caminhos da sua trajetória de partida.

Também acumulamos mais uma proposição, implicando, sobre essas trajetórias que se formavam, uma noção de molde. Molde é intenção que gera uma atenção específica sobre o movimento, para transformar uma trajetória em um princípio primeiro de reprodução.

Fragmentos das indicações coreográficas:

– Estrutura: Sabotar a memória da Estrutura/Sem ser criativo. A volta nunca é redonda.

– Molde: idéia de produzir algo com a certeza de que isso será utilizado para reprodução.

  • Construir Junto (Relação/Conversa)

Esse sempre foi um dos limites da pesquisa. Entender a construção conjunta de saber e produção, seja de movimento sensório-motor, seja de subjetividade. Como nosso interesse estava voltado para a linguagem, pensávamos sobre a possibilidade de constituirmos uma conversa gestual onde a prática pudesse nos mostrar outras formas de organização que não fossem necessariamente dialéticas.

Um gesto contamina o outro, atravessa, sobrepõe e escapa. Um gesto junto de outros escuta e diminui a sua latência e sentido no espaço. O corpo convoca suas fragilidade e memórias para junto de outros corpos constituir um vocabulário de sensações.

A construção conjunta de algo é um horizonte utópico. A possibilidade que há nesse gesto, conectado com a produção de diferença de cada corporeidade, quando tem como objetivo o consenso, pode resultar em um conflito constante. Mas o nosso objetivo estava no dissenso e na vontade de perceber através da incompletude um espaço imagético de atuação e responsabilidade junto do outro.

Como juntos podemos construir uma incompletude?

Fragmentos das indicações coreográficas:

– Tanto na cena como fora dela.

– Como manter uma conversa para além da dialética?

– Espaço/Silêncio/Dinâmica/Justaposição/Dialética/Negativo/Positivo.

– Atração Magnética: Polos positivos e negativos.

– Distâncias e dimensões.